Inicio 2019 com uma reflexão do texto de Rubem Alves.,,
“Temos dois olhos. Com um, vemos
as coisas do tempo, efêmeras, que desaparecem. Com o outro, vemos as coisas da
alma, eternas, que permanecem”, assim escreveu o místico Ângelus Silésius. No
consultório do oftalmologista estava uma gravura com o corte anatômico do olho.
Científica. Verdadeira. Naquela noite, o mesmo oftalmologista foi se encontrar
com sua bem-amada. Olhando apaixonado os seus olhos e esquecido da gravura
pendurada na parede do seu consultório, ele falou: “Teus olhos, mar profundo
...”. No consultório ele jamais falaria assim. Falaria como cientista. Mas os
olhos da sua amada o transformaram em poeta. Cientista, ele fala o que vê com o
primeiro olho. Apaixonado, ele fala o que vê com o segundo olho. Cada olho vê
certo no mundo a que pertence. O filósofo Ludwig Wittgenstein criou a expressão
“jogo de linguagem” para descrever o que fazemos ao falar. Jogamos com
palavras... Veja esse jogo de palavras chamado “piada”. O que se espera de uma
piada é que ela provoque riso. Imagine, entretanto, que um homem, em meio aos
risos dos outros, lhe pergunte: “Mas isso que você contou aconteceu mesmo?”. Aí
você o olha perplexo e pensa: “Coitado! Ele não sabe que nesse jogo não há
verdades. Só há coisas engraçadas”. Vamos agora para um outro jogo de palavras,
a poesia: “(...) e, no fundo dessa fria luz marinha, nadam meus olhos, dois
baços peixes, à procura de mim mesma”. Aí o mesmo homem contesta o que o poema
diz: “Mas isso não pode ser verdade. Se a Cecília Meireles estivesse no fundo
do mar ela teria se afogado. E os olhos não são peixes ...”. Pobre homem... Não
sabe que a poesia não é linguagem para dizer as coisas que existem. É jogo para
fazer beleza. A ciência também é um jogo de palavras. É o jogo da verdade,
falar o mundo como ele é. Acontece que nós, seres humanos, sofremos de uma
“anomalia”: não conseguimos viver no mundo da verdade, no mundo como ele é. O
mundo como ele é é muito pequeno para o nosso amor. Temos nostalgia de beleza,
de alegria e – quem sabe? – de eternidade. Desejamos que as alegrias não tenham
fim! Mas beleza e alegria, onde se encontram essas “coisas”? Elas não estão
soltas no mundo, ao lado das coisas do mundo tal como ele é. Elas não são,
existem não existindo, como sonhos, e só podem ser vistas com o “segundo olho”.
Quem as vê são os artistas. E se alguém, no uso do primeiro olho, objeta que
elas não existem, os artistas retrucam: “Não importa. As coisas que não existem
são mais bonitas” (Manoel de Barros). Pois os sonhos, no final das contas, são
a substância de que somos feitos. [...] É no mundo encantado de sonhos que
nascem as fantasias religiosas. As religiões são sonhos da alma humana que só
podem ser vistos com o segundo olho. São poemas. E não se pode perguntar a um
poema se ele aconteceu mesmo... Jesus se movia em meio às coisas que não
existiam e as transformava em parábolas, que são estórias que nunca
aconteceram. E, não obstante a sua não existência, as parábolas têm o poder de
nos fazer ver o que nunca havíamos visto antes. O que não é, o que nunca
existiu, o que é sonho e poesia tem poder para mudar o mundo. “Que seria de nós
sem o socorro do que não existe?”, perguntava Paul Valéry. Leio os poemas da
Criação. Nada me ensinam sobre o início do universo e o nascimento do homem.
Sobre isso falam os cientistas. Mas eles me fazem sentir amoravelmente ligado a
este mundo maravilhoso em que vivo e que minha vocação é ser seu jardineiro...
Leio a parábola do Filho Pródigo, uma estória que nunca aconteceu. Mas ao lê-la
minhas culpas se esfumaçam e compreendo que Deus não soma débitos nem
créditos...
Dois olhos, dois mundos, cada um
vendo bem no seu próprio mundo...Aí vieram os burocratas da religião e
expulsaram os poetas como hereges. Sendo cegos do segundo olho, os burocratas
não conseguem ver o que os poetas veem. E os poemas passaram a ser interpretados
literalmente. E, com isso, o que era belo ficou ridículo. Todo poema
interpretado literalmente é ridículo. Toda religião que pretenda ter
conhecimento científico sobre o mundo é ridícula. Não haveria conflitos se o
primeiro olho visse bem as coisas do seu lugar, e o segundo também as visse do
seu lugar. Conhecimento e poesia, assim, de mãos dadas, poderiam ajudar a transformar
o mundo".
(ALVES, Rubem. Pimentas: para
provocar um incêndio, não é preciso fogo. São Paulo: Planeta 2014. Adaptado).
Rubem Azevedo Alves (Boa
Esperança, 15 de setembro de 1933 — Campinas, 19 de julho de 2014) foi um
psicanalista, educador, teólogo, escritor e pastor presbiteriano brasileiro.
Foi autor de livros religiosos, educacionais, existenciais e infantis. É
considerado um dos maiores pedagogos brasileiros de todos os tempos. É um dos fundadores da Teologia da Libertação e intelectual polivalente
nos debates sociais no Brasil. Foi professor da Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP).