sábado, 12 de janeiro de 2019

Sobre a ciência e a fé



Inicio 2019 com uma reflexão do texto de Rubem Alves.,,

“Temos dois olhos. Com um, vemos as coisas do tempo, efêmeras, que desaparecem. Com o outro, vemos as coisas da alma, eternas, que permanecem”, assim escreveu o místico Ângelus Silésius. No consultório do oftalmologista estava uma gravura com o corte anatômico do olho. Científica. Verdadeira. Naquela noite, o mesmo oftalmologista foi se encontrar com sua bem-amada. Olhando apaixonado os seus olhos e esquecido da gravura pendurada na parede do seu consultório, ele falou: “Teus olhos, mar profundo ...”. No consultório ele jamais falaria assim. Falaria como cientista. Mas os olhos da sua amada o transformaram em poeta. Cientista, ele fala o que vê com o primeiro olho. Apaixonado, ele fala o que vê com o segundo olho. Cada olho vê certo no mundo a que pertence. O filósofo Ludwig Wittgenstein criou a expressão “jogo de linguagem” para descrever o que fazemos ao falar. Jogamos com palavras... Veja esse jogo de palavras chamado “piada”. O que se espera de uma piada é que ela provoque riso. Imagine, entretanto, que um homem, em meio aos risos dos outros, lhe pergunte: “Mas isso que você contou aconteceu mesmo?”. Aí você o olha perplexo e pensa: “Coitado! Ele não sabe que nesse jogo não há verdades. Só há coisas engraçadas”. Vamos agora para um outro jogo de palavras, a poesia: “(...) e, no fundo dessa fria luz marinha, nadam meus olhos, dois baços peixes, à procura de mim mesma”. Aí o mesmo homem contesta o que o poema diz: “Mas isso não pode ser verdade. Se a Cecília Meireles estivesse no fundo do mar ela teria se afogado. E os olhos não são peixes ...”. Pobre homem... Não sabe que a poesia não é linguagem para dizer as coisas que existem. É jogo para fazer beleza. A ciência também é um jogo de palavras. É o jogo da verdade, falar o mundo como ele é. Acontece que nós, seres humanos, sofremos de uma “anomalia”: não conseguimos viver no mundo da verdade, no mundo como ele é. O mundo como ele é é muito pequeno para o nosso amor. Temos nostalgia de beleza, de alegria e – quem sabe? – de eternidade. Desejamos que as alegrias não tenham fim! Mas beleza e alegria, onde se encontram essas “coisas”? Elas não estão soltas no mundo, ao lado das coisas do mundo tal como ele é. Elas não são, existem não existindo, como sonhos, e só podem ser vistas com o “segundo olho”. Quem as vê são os artistas. E se alguém, no uso do primeiro olho, objeta que elas não existem, os artistas retrucam: “Não importa. As coisas que não existem são mais bonitas” (Manoel de Barros). Pois os sonhos, no final das contas, são a substância de que somos feitos. [...] É no mundo encantado de sonhos que nascem as fantasias religiosas. As religiões são sonhos da alma humana que só podem ser vistos com o segundo olho. São poemas. E não se pode perguntar a um poema se ele aconteceu mesmo... Jesus se movia em meio às coisas que não existiam e as transformava em parábolas, que são estórias que nunca aconteceram. E, não obstante a sua não existência, as parábolas têm o poder de nos fazer ver o que nunca havíamos visto antes. O que não é, o que nunca existiu, o que é sonho e poesia tem poder para mudar o mundo. “Que seria de nós sem o socorro do que não existe?”, perguntava Paul Valéry. Leio os poemas da Criação. Nada me ensinam sobre o início do universo e o nascimento do homem. Sobre isso falam os cientistas. Mas eles me fazem sentir amoravelmente ligado a este mundo maravilhoso em que vivo e que minha vocação é ser seu jardineiro... Leio a parábola do Filho Pródigo, uma estória que nunca aconteceu. Mas ao lê-la minhas culpas se esfumaçam e compreendo que Deus não soma débitos nem créditos...
Dois olhos, dois mundos, cada um vendo bem no seu próprio mundo...Aí vieram os burocratas da religião e expulsaram os poetas como hereges. Sendo cegos do segundo olho, os burocratas não conseguem ver o que os poetas veem. E os poemas passaram a ser interpretados literalmente. E, com isso, o que era belo ficou ridículo. Todo poema interpretado literalmente é ridículo. Toda religião que pretenda ter conhecimento científico sobre o mundo é ridícula. Não haveria conflitos se o primeiro olho visse bem as coisas do seu lugar, e o segundo também as visse do seu lugar. Conhecimento e poesia, assim, de mãos dadas, poderiam ajudar a transformar o mundo".

(ALVES, Rubem. Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo. São Paulo: Planeta 2014. Adaptado).

Rubem Azevedo Alves (Boa Esperança, 15 de setembro de 1933 — Campinas, 19 de julho de 2014) foi um psicanalista, educador, teólogo, escritor e pastor presbiteriano brasileiro. Foi autor de livros religiosos, educacionais, existenciais e infantis. É considerado um dos maiores pedagogos brasileiros de todos os tempos. É um dos fundadores da Teologia da Libertação e intelectual polivalente nos debates sociais no Brasil. Foi professor da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).


Nenhum comentário: